O bilhete na cozinha.

“Mário,
Preste atenção.”

Começava assim o bilhete que estava em cima da mesa da cozinha,não era nada do nível romântico e bonito,o bilhete dizia pra levar o lixo pra fora e outras coisas,depois de 20 e tantos anos acho que funciona assim,os bilhetes são sobre pequenas coisas da casa ou sobre consultas médicas.Mas talvez essa seja a graça,digo assim porque o amor deve estar maduro,não penso que o amor tenha acabado mas se transformado,porque eu não agüentaria ninguém,durante tanto tempo se não fosse por amor ou talvez seja comodismo.
Todas as manhãs ele acorda cedo e faz café,ele não bebe café todas as manhãs,ele faz o café todas as manhãs pra ela,como se fosse um pacto estranho,quando brigam a noite ou quando tudo está bem,ele acorda cedo e faz café,ela não gosta de moda de viola,mas mesmo assim assiste o programa caipira com ele,ou talvez ele tenha a ensinado a gostar,ela arruma,ele desarruma,ele faz a feira todos os domingos porque ela gosta de verduras e frutas frescas,ela gosta do modo como os anos passaram e ele ficou ainda mais bonito,japonês grisalho de olhos cor de mel,ele depois de tanto tempo tem a mesma brincadeira boba,ela corta a parte de trás do cabelo dele,ele queria vender o carro velho dela,ela não queria,ele está reformando o carro dela não porque quer mas porque ela pediu,ela gosta de ouvir música alta,mas desliga o rádio quando ele chega pra ouvir o que ele tem a dizer,mesmo que algumas conversas sejam repetidas,eles discutem sobre política e ainda hoje ele não entendeu porque ela votou à favor da posse de armas no plebiscito que teve,ele não é do tipo que dá flores mas ela já deu flores a ele.Ela tem um vidro de perfume que ele deu pra ela,estranhamente ela não usa esse perfume,dizem que quando o perfume acaba o amor vai junto,ela não usa esse perfume.

O bilhete terminava assim:
“Beijo,Bete.”
Ela não tinha a necessidade de assinar o bilhete,porque nesses 20 e tantos anos ele só recebeu bilhetes dela.
Gosto do modo que eles se conheceram,ele trocou o pneu do carro dela,o carro que ele está reformando, e no primeiro encontro aconteceu uma tragédia um pouco antes de se encontrar com ela,ele foi assaltado e chegou lá com 15 minutos de atraso,contou o que tinha acontecido e ela achou lindo que mesmo depois de um assalto ele foi vê-la.Só sei que até hoje ele deve duas coxinhas pra ela.
Todas as manhãs antes de se levantar ele aperta a mão dela e deixa o café em cima da mesa,mas hoje pensei que seria diferente,hoje ela acordou mais cedo e escreveu o bilhete,mas para minha surpresa e para surpresa dela,o café antes das 5h da manhã já estava pronto,às vezes não é o que a gente diz,mas o que a gente faz e nessa circunstância madrugar pra fazer o café é de extrema importância.
Ela simplesmente não esconde o sorriso com esse pequeno ato,às vezes eu tenho certeza que não é comodismo.